A marca da desigualdade brasileira é a raça

Por Regiane Regis, no Geledés Instituto da Mulher Negra:

 Não é possível compreender a discrepante desigualdade social no Brasil, sem se utilizar do conceito de raça enquanto categoria de análise.

 Desde que o Brasil é Brasil que a pobreza e a riqueza têm cor, sendo que as políticas de exclusão nunca visaram mudar as estruturas sociais, mas sim, manter as que já existem. É com base nisso, que no fim do século XVIII, período correspondente à abolição da escravatura, as teorias raciais eclodem.

 As leis que anunciam a já preeminente emancipação dos escravizados são acompanhadas por outras que garantem a permanência destes numa condição de subsistência, bem como não garantem que estes escravos recém-emancipados sejam indenizados, ou tenham o mínimo de estrutura para alçar a posições sociais mais altas. Um exemplo disso é a lei de terras, que precede a proibição definitiva do tráfico de escravos por meio da implementação da lei Eusébio de Queiroz em 1850. Segundo esta lei, as terras devolutas, ou seja, as terras que não tinha dono, só podiam ser obtidas junto ao governo e através da compra. A partir de então foram forjados vários documentos para ampliar e garantir a posse das terras para aqueles que já possuíam, sendo que as futuras aquisições estariam relegadas aos grupos que tivessem uma melhor condição financeira. É importante lembrar que, quando os imigrantes vêm para o Brasil é dado à maioria deles um pedaço de terra, prerrogativa nunca dada ao escravizado e dificultada com a implantação da lei de terras.
 Outra lei criada na perspectiva de manter o alijamento social da população negra é a lei da vadiagem implantada poucos anos depois da abolição da escravatura. Legitimando o encarceramento desta população liberta ''sem era nem beira'', jogada nas ruas com ''uma mão na frente e a outra atrás''. É preciso compreendermos que ao final do século XIX e inicio do século XX, uma serie de leis, serão criadas de modo a aumentar o controle social, sobre a população negra.

 Analisando por alto a sociedade brasileira é possível que se tenha a ilusão da existência de uma linearidade histórica, porque os lugares dos personagens históricos no cenário brasileiro permanecem os mesmos; o chicote só muda de nome e continua rasgando apenas o lombo do negro, mas, basta ir um pouco mais fundo para perceber que os sujeitos da História atuam de forma que o status quo se mantenha. Se os homens que compunham a elite política e econômica brasileira indenizassem os negros e negras e criassem políticas que garantisse a sua mobilidade social, com certeza a realidade atual seria outra. 

 Note um exemplo prático de como as instituições são geridas de forma a manter as hierarquias sociais. No Brasil escravocrata, o escravizado era juridicamente considerado ''coisa'', esse prescrito jurídico dava direito ao dono do escravizado a fazer o que bem entendesse com a ''coisa'' que possuía. Depois da abolição da escravatura, o racismo científico se encarrega de ratificar que essa população liberta não tinha alma, era degenerada e propensa ao crime, praticamente uma coisa. 

 As teorias raciais não são criadas no Brasil, elas são importadas da Europa e adequadas ao contexto brasileiro pelos supostos cientistas da época. Afinal de contas, nessa época ser um cientista, ou melhor, ser um homem da ciência, era moda. Que o diga Silvio Romero, quase um Simão Bacamarte da ciência do século XIX.

 O racismo científico vem para explicar e naturalizar a diferenças de classe a partir do viés racial. Tendo como um dos porta-vozes o já citado Silvio Romero e o não menos polêmico Raimundo Nina Rodrigues. Estes dois ''cientistas'', respectivamente, integrantes da Faculdade de Direito e de Medicina tinham sérias divergências teóricas. Enquanto Silvio Romero acreditava que seria possível a formação de uma verdadeira nação brasileira a partir do cruzamento das três raças, supondo que com o advento da miscigenação ocorreria à predominância da raça branca, tida como superior, e o desaparecimento da raça negra. Nina Rodrigues afirmava que isso seria impossível, pois, a raça degenerada (a negra) causaria desequilíbrios e perturbações psíquicas. Porém, ambos concordavam em um ponto, a pobreza era um legado merecido àquela raça não evoluída, assim afirmavam eles. 

 O desenvolvimento das instâncias legislativas e educacionais no Brasil é constituído com o objetivo de barrar a ''população de cor''. Inclusive são os intelectuais difusores do racismo científico brasileiro que vão ocupar lugar de destaque nas primeiras Universidades, Institutos de Pesquisa e demais instituições de ensino do Brasil ainda muito principiante no assunto ciência; quase um bebê.

 As Universidades foram por muito tempo Instituições de ensino sustentadas pelo estado para alegar e reproduzir dentre a sociedade a suposta existência de raças, o que é chamado de racialismo, e indo absurdamente mais além, a existência de uma hierarquia entre essas raças, o que é denominado racismo. 

 A população negra tem lugar teve seu lugar guardado no mento de fazer a massa, carregar o bloco e carregar peso, mas, na hora de ocupar um lugar nas cadeiras das primeiras Instituições de ensino, esse direito lhe é negado. 

 Na tentativa de sanar essa dívida histórica do Estado brasileiro são implantadas as políticas de ação afirmativa, como por exemplo, as cotas, que garantem o acesso do povo negro à Universidade. A politica de cotas no Brasil é implantada pela primeira vez em 2004 na Universidade Federal do Rio de Janeiro enquanto política de governo é transformada em política de Estado por meio da sanção da lei 12.711/2012 pela então Presidenta Dilma Rousseff. No total a lei completa 10 anos de implantação em 2014, o que exige um balanço da sua efetividade e eficácia. 

 Os estudos já realizados comprovam que as cotas proporcionaram um aumento significativo da entrada da população negra na Universidade. Quantitativo ainda muito aquém do necessário, pois a entrada nos presídios e nos cemitérios é imensamente desproporcional a entrada na Universidade, o que prova que há algo de errado. 

 Houve muitos avanços nas políticas de acesso, porém pouco se avançou nas de permanência. Com a situação de vulnerabilidade social da maioria dos negros e negras que entram na Universidade, se faz necessária a implantação de políticas que garantam que esses regressos tenham condições de se manter no âmbito universitário, ainda muito opressor e excludente. É muito difícil permanecer em um local que tenta de todas as formas lhe mostrar que você é um intruso ali. 

 Existe um grande problema no acesso as bolsas de permanência, ainda insuficientes e deficitárias. O movimento estudantil precisa intervir e propor políticas de permanência eficazes; o estudante cotista tem que receber o auxílio que lhe é de direito sem passar por humilhações, constrangimentos e sem precisar ficar um semestre esperando. Os programas de permanência já existentes precisam funcionar de forma efetiva. O Estado brasileiro tem que pagar sua dívida, e nós militantes, estaremos aqui para cobrar sempre que isso se fizer necessário.

Seguiremos lutando por uma Universidade, pública, popular e de qualidade.

Regiane Regis é estudante de história da UFBA, militante do Coletivo Quilombo e do Coletivo Candaces.

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